terça-feira, 26 de agosto de 2014

As crianças do Bolsa Família

POR LARISSA VELOSO
Parece um contingente quase invisível, mas um quarto da população brasileira é beneficiária do Bolsa Família. São cerca de 14 milhões de famílias, totalizando mais de 50 milhões de pessoas, entre crianças, jovens e adultos. Desse total, 23,5 milhões (quase 50%) têm até 17 anos, sendo 2 milhões deles em Minas Gerais. Considerando que o programa completa 11 anos em 2014, podemos dizer que há uma geração de crianças que vem se formando sob o teto do Bolsa Família. Mas quem são elas? Qual é o impacto do benefício na vida desses meninos e meninas?
Para começar, é preciso conhecer como funciona essa política pública. Para além das críticas de que o programa apenas alimenta a pobreza ou que “forma vagabundos”, existe uma fórmula que tem ganhado força na América Latina, a chamada “transferência de renda condicionada”, que hoje é adotada em pelo menos 17 países do continente. No caso do Brasil, para uma família receber o benefício, as crianças e adolescentes têm que cumprir uma frequência mínima na escola, que é de 85% para os filhos entre 6 e 15 anos e de 75% para adolescentes de 16 e 17 anos. Também é necessário cumprir o calendário de vacinação e monitorar o peso das crianças a cada seis meses.
Para entrar no programa, é preciso ter renda de até R$ 154 por membro da família. Os valores do programa foram reajustados em maio. O benefício varia de acordo com o número de filhos e a idade deles, sendo que, em média, o valor é de R$ 152 por residência. Apesar de o cadastro ser feito pelo município, o sistema não permite que sejam inscritas famílias que estejam fora do perfil do programa, uma vez que os dados são retirados do Cadastro Único – banco de dados federal sobre as famílias mais pobres. “Há também uma estimativa de pobres por município. É virtualmente impossível conceder o Bolsa Família para quem é de fora do perfil. Assim, você evita essa relação clientelista, por exemplo, entre prefeito e eleitores”, explica Flávio Cireno, Coordenador-Geral de Apoio à Integração de Ações do Ministério do Desenvolvimento Social.
O papel das mães
O repasse do benefício também é feito de forma impessoal, através de um cartão, e com preferência da titularidade para as mulheres. Esse é um dos diferenciais do programa, que garante uma proteção a mais para as crianças. “Na elaboração do programa, eles tiveram muito claro que são as mulheres que se preocupam em primeiro lugar com a saúde e a alimentação das crianças”, diz Walquíria Leão Rego, socióloga e autora do livro Vozes do Bolsa Família (Editora Unesp), escrito em conjunto com o filósofo italiano Alessandro Pinzani, e que tem se tornado referência no assunto. De fato, até entre as próprias famílias há o consenso de que é a mulher quem pode administrar melhor o recurso. E mais: há o entendimento de que o dinheiro recebido no programa é para beneficiar os filhos. “Uma coisa que notei em comum em todos os lugares foi que o dinheiro era sempre visto como sendo do filho. É algo que é gasto com a criança ou o adolescente, para comprar material escolar, comida e roupa infantil. Tanto as mulheres quanto os maridos entendem que esse dinheiro é da criança”, revela a doutora em Ciências Sociais Milene Peixoto Ávila, da Unicamp, que pesquisou sobre o programa entre famílias na Zona Sul de São Paulo e em São Carlos, no interior paulista.
Apesar de R$ 150 reais não transformarem a vida de uma criança, podem fazer muita diferença para famílias que são miseráveis e passam por grandes dificuldades. Para algumas mães, pode inclusive significar a diferença entre passar algum tempo com os filhos ou emendar um trabalho no outro. Esse é o caso de Cíntia Barbosa Procópio, de 26 anos. Auxiliar de serviços gerais em Belo Horizonte, ela costumava sair do trabalho e emendar a jornada com bicos para complementar a renda antes de ir para casa cuidar dos dois filhos pequenos. Quando a terceira criança nasceu, há quatro anos, e apresentou problemas de saúde, a jornada tripla se tornou impossível. Com problemas no intestino, o pequeno Pablo passou por tratamentos complicados e uma cirurgia, pelo SUS, de reconstrução do aparelho digestivo. “Antes eu dava um jeito, era um salário mínimo para tudo. Mas quando nasceu o terceiro, ficou difícil continuar no trabalho. Aí eu fui na [secretaria] regional e pedi para entrar no programa”, conta Cíntia. Há oito meses, ela perdeu o marido, morto na porta de um bar por uma bala perdida. Hoje, ela é responsável pelo sustento dos três filhos e da mãe. Com o dinheiro do Bolsa Família, compra material escolar, roupas e chinelos para as crianças. E não se vê sem receber o benefício do governo.
“Quando vou falar sobre o Bolsa Família, primeiro eu pergunto: você sabe o que é miséria? Sem esse entendimento antes, é difícil romper com o preconceito. É muita pobreza mesmo. Viver menos miseravelmente já é uma mudança”, diz a pesquisadora Theresa Reis Timo, da PUC Minas, que estudou a relação das mulheres beneficiárias com o programa em Sete Lagoas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Mesmo para as mães que ficam em casa para cuidar dos filhos, a relação com as crianças e adolescentes mudou a partir do momento em que elas passaram a receber o benefício. “Na pesquisa, eu tinha o enfoque de como o Bolsa Família mudou a vida das mulheres enquanto cuidadoras de seus filhos, nessa função social que elas exercem. E o que eu descobri foi que cuidar ficou mais fácil a partir do momento em que elas passaram a receber o benefício. Todas concordam que a relação com os filhos melhorou. Elas puderam inclusive atender mais às demandas das crianças. É comprar material escolar, um chinelo, uma comida que a criança goste. Antes a resposta era quase sempre não. Agora tem essa margem”, explica Theresa Timo.
Crianças na escola
Se o dinheiro traz uma nova relação com o consumo, as condicionantes também alteram a relação com a escola, uma vez que as crianças agora têm que frequentar as aulas; caso contrário, a família pode perder o benefício. Se muitas vezes ir às aulas era visto como algo flexível dentro da rotina da família, agora a frequência é vista como obrigatória. “O que eu vi foi que antes era uma coisa negociável, dentro da conivência da própria mãe. Era aquela desculpa de ‘hoje dormi muito, amanhã eu vou…’ E hoje é um compromisso, mesmo, que elas assumiram. As mães são as principais interessadas em manter o recurso. Quando a criança perde o escolar, elas pegam dinheiro emprestado para pegar o ônibus, ligam para saber se pode entrar atrasado, há um esforço maior”, diz Theresa Timo. Algumas taxas relativas à educação das famílias que recebem o benefício chegam a ser inclusive melhores que as dos demais estudantes da rede pública. “A taxa de abandono escolar dos estudantes do Bolsa Família é menor. No Ensino Fundamental, temos 2,8% de abandono de crianças do programa, enquanto que, na parcela restante, o índice é de 3,22%. No Ensino Médio, esses valores passam para 7,4% e 11,3%, respectivamente”, revela a gerente de Coordenação Municipal de Programas de Transferência de Renda da Prefeitura de Belo Horizonte, Nívia Soares da Silva, citando dados nacionais do Censo Escolar da Educação Básica, de 2012.
Mas isso não quer dizer necessariamente que as famílias passam a ver a educação como um direito ou um fator fundamental no futuro da criança. “A contrapartida às vezes é vista mais como uma obrigação, uma coerção, ao invés de acontecer uma conscientização e uma garantia de direitos. Observei isso principalmente quando tem o acompanhamento de alguma assistente social, porque os beneficiários se sentem cobrados”, diz a pesquisadora Milene Ávila. Além disso, não basta ir à escola se a educação oferecida no município não é de qualidade. “A criança frequenta a escola, mas você tem que entender que a escola de Belo Horizonte é diferente daquela do Vale do Jequitinhonha, que mal ensina a ler, por exemplo. A estrutura das cidades e do estado para a educação é precária”, diz Walquíria.
A pesquisadora destaca também que é previsível que o acesso à educação e o próprio benefício do Bolsa Família ainda não sejam vistos como um direito. “Nos meus cinco anos de pesquisas com os beneficiários, acho que encontrei no máximo sete pessoas que me disseram ‘é meu direito receber’. Essa cultura chegou muito tarde aqui no Brasil e ainda não se transformou numa mentalidade pública. Não sabemos que temos direitos. E aí muitos associam o benefício a uma ajuda dada por esse ou aquele governante”, diz a pesquisadora. A política e a associação do programa com o governo federal têm, inclusive, atrapalhado o crescimento do Bolsa Família em algumas localidades, acredita Walquíria. “O programa pode ser melhorado, e muito, pelos prefeitos e governadores locais. Mas é a tal questão. Eles pensam: ‘se eu complementar, o governo federal é que vai lucrar por cima disso’. E aí não fazem melhorias”, ressalta.
Além da questão da educação, as outras condicionantes relacionadas ao calendário de vacinação e pesagem periódica das crianças, além da obrigatoriedade do prénatal para as gestantes, têm também ajudado a melhorar os índices de mortalidade e desnutrição infantil. Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, com o apoio de universidades britânicas e do governo brasileiro, revelou uma queda de 17% na mortalidade infantil entre crianças até 5 anos nas cidades atendidas pelo Bolsa Família. A pesquisa mediu dados referentes ao período compreendido entre os anos de 2004 e 2009. Os pesquisadores usaram modelos matemáticos para tentar quantificar apenas os benefícios gerados pelo programa e afirmam que essa parcela da melhora se deve à adoção do Bolsa Família. Quando se fala em mortes por desnutrição, o índice de redução chega a 65%.
Realidade local
Mas, apesar de todas as vantagens, o programa Bolsa Família não está isento de críticas no que diz respeito ao benefício trazido para crianças e adolescentes. Uma das ressalvas é a da integração do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) ao Bolsa Família. Especialistas da área dizem que o foco se perdeu, passando a se trabalhar apenas na questão da renda e da escolaridade e deixando de lado a questão de a criança trabalhar ou não. Tecnicamente, é possível que uma criança de uma família que é beneficiária do programa esteja trabalhando, mesmo que frequente a escola, especialmente se a família não recebe um acompanhamento cuidadoso dos serviços de assistência social do município.
Porém, aqui esbarramos em outra questão, que é, ao mesmo tempo, qualidade e defeito do Bolsa Família. As prefeituras e governos locais são livres para gerenciarem o programa como melhor entenderem, alocando-o no órgão que achar mais apropriado e organizando os programas de apoio à sua própria maneira. Se, por um lado, esse modelo permitiu que o Bolsa Família se espalhasse pelo país, por outro, permitiu que problemas ligados à pobreza e à má administração persistissem. Dessa forma, municípios que não têm tradição de atenção social aos seus cidadãos continuam com um atendimento social precário. Locais em que há falta de emprego continuam sem oferta de trabalho, e cidades com escolas ruins continuam com educação deficiente, por exemplo. “O que o Bolsa Família não faz é mudar a estrutura econômica do município. Municípios pobres e com pouca oportunidade de emprego não vão mudar por causa do programa. A pessoa precisa da oferta de trabalho do outro lado para ela deixar de depender do benefício e mudar de vida”, diz Flávio Cireno, do MDS, quando indagado sobre a existência de “portas de saída” para o programa. Ele afirma que o objetivo do programa não é solucionar a falta de acesso aos serviços, mas servir como garantia de uma renda mínima. “A mudança da pobreza para a prosperidade deve ser feita por meio de outros programas e políticas, como o Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego]”, cita.
De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Social, no segundo semestre de 2013, mais de 45 mil famílias deixaram o programa por terem mudado de faixa de renda e saído da pobreza. Outras 514 mil famílias deixaram o programa no mesmo período por outros motivos, como chegada dos filhos à idade adulta, morte ou mesmo mudança de município. Apesar de significativo, o valor é pequeno, considerando que o número de beneficiários do programa vem crescendo quase que constantemente desde 2003. Pela própria natureza do benefício, é provável que uma mudança palpável só possa ser vista em algumas décadas. Apesar disso, é inegável que, pela primeira vez, um contingente de 23 milhões de brasileiros chegará à idade adulta tendo tido o mínimo necessário em termos de alimentação e educação durante a infância.
Bolsa familia

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